segunda-feira, 19 de abril de 2010

Aquele tênis ...

Aquele tênis que sua mãe comprou para dar de presente e você deixou jogado em um canto qualquer do quarto porque não combinava com nenhuma de suas roupas foi o motivo pelo qual um pobre jovem chinês perdeu o dedo indicador na máquina da fábrica de calçados e não pôde apontar para a Lua no dia em que o céu era o mais lindo que havia visto na vida, perdendo a chance de ser romântico com aquela menina que ele tentava conquistar desde que tinha seis anos de idade, e estudavam juntos na mesma classe, e comiam lanche juntos, e brincavam, e ele planejava ser a paixão da vida dela, mas se envergonhou pela deficiência adquirida após anos de trabalhos insalubres, calou-se, e apenas observou o mais belo da turma galantear sua amada, roubando-lhe a esposa de seus sonhos: ex-futura mãe de seus filhos.
Aquele mesmo tênis foi comprado com dinheiro ganho por sua mãe após 66 horas semanais em um emprego stressante, aturando clientes prepotentes e intolerantes, chefes constantes e ameaçadores, destruídos ônibus lotados, calor, suor, comprimida entre desconhecidos rumo ao mesmo destino final, cansada, sonolenta e com o único desejo de te agradar e ver novamente aquele mesmo sorriso registrado aos seus 5 anos de idade, quando seu pai montou durante a madrugada que deixou de dormir uma árvore de Natal e colocou abaixo de seus galhos plastificados aquele presente embrulhado que você gritou e chorou para conseguir porque viu na televisão, e na escola, pois todos os seus amigos tinham e você queria também.
Aquele tênis, e seu valor comercial, calculando sua porcentagem correta em valores de comissão na loja que foi vendido, foi também os centavos que restavam para que o vendedor, após a jornada de trabalho em uma simples loja de um bairro central metropolitano, rumasse até a joalheria perto de casa e gastasse todas as suas sagradas economias dos últimos dezoito meses, deixando de beber, festejar e se divertir, em um anel de ouro singelo mas apaixonadamente comprado para sua até então namorada, que ao entender a proposta, chorou, e disse "sim", pois tudo o que importava naquele instante era a alegria de imaginar uma vida difícil, porém feliz na medida do possível, ao lado daquele que acreditava ser o seu eterno companheiro de luta.
Aquele tênis foi produzido após meses de estudo, análise e acordos, por profissionais que estudaram anos em uma faculdade particular sofridamente paga com salário de estagiário, servindo café e tirando xerox para superiores, com o sonho na cabeça de um dia ingressar em uma renomada empresa e compensar toda raiva e dor já sentidas.
Aquele tênis, apesar de tudo isso, não foi usado porque você tinha que vestir uma roupa que impressionasse alguma garota naquela balada legal que você costumava ir, garantindo uma noite de diversão e a vida inteira de indiferença. E aquela garota, que após meia hora de conversas e trocas de olhares interessantes e interessados, acreditou ter encontrado o melhor rapaz do mundo, e se apaixonou no mesmo instante que os seus lábios se tocaram; e nas semanas seguintes, quando você não ligou, ela ficou traumatizada, nunca pôde confiar novamente em outra pessoa, e viveu o resto de seus ordinários dias sozinha em um sobrado olhando pela janela e criticando as crianças barulhentas que jogavam bola na rua e só queriam saber de fazer um gol entre aquelas traves feitas com pedras e chinelos.
Aquele tênis é somente um tênis, mas também é a maior prova de como as menores coisas da vida significam muito, para muitos, e às vezes não se dá o valor adequado às coisas que realmente importam. Inclusive eu, e minhas palavras, e este texto.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Palavras sobre poucos minutos

Manhã de um dia de semana comum. Um céu despretensiosa e uniformemente cinza europeu coadjuva a paisagem exposta diante de meus olhos, eclipsado pelas barras metálicas da janela de um quarto, agora frias devido ao clima invernoso, outlier entre todos os dias de todos os meses de todos os outonos desde todo o sempre.
Deitado naquela cama - que se não for a melhor do mundo, com certeza merece menção honrosa - como recheio entre cobertores e colchão, me recuso a aceitar a doce claridade que anuncia o começo da empreitada diária e decreta o fim do descanso preguiçoso que todo homem acredita merecer por no mínimo uma vez durante sua existência.

Meus pensamentos ainda horizontais se levantam e a saúdam quando passa entre os umbrais de madeira que dão acesso ao quarto.
Ela que até agora se banhava em água quente enquanto eu me irrita com luz, clima e tempo, atrai pra si toda minha tímida atenção sonolenta sem nem ao menos precisar querer tal mérito natural.
Admiro seu corpo ao colocar a roupa e analiso cada detalhe como se a pele, o cabelo, o rosto, as pernas, braços e todo o resto fossem milimetricamente desenhados com pincel de Marta por algum genial artista renascentista altamente inspirado no melhor dia de sua vida.

Ela dá um sorriso e pula em cima de mim para desnecessariamente me desejar um bom dia, já que esta simples ação já o tornou realmente ótimo. Retribuo singelamente, mas com milhões de frases secretas escondidas na ponta da língua, espetando meu cérebro com a vontade da profissão no mesmo sentimento crônico do pé suicida ao pisar no vazio sabendo que seu par já se encontra no limite do abismo. A iminência do desconhecido me dá apenas a certeza de não saber o que está acontecendo, e ainda assim adorar.