quarta-feira, 30 de junho de 2010

Ponto de vista

O velho abajur preto de lâmpada fluorescente aceso pela sonolenta mão direita após o contínuo grito alarmante do despertador indicando que são sete e vinte da manhã fria de uma quarta-feira de trabalho.


O quarto bagunçado, roupas jogadas em cima da cadeira e penduradas em cabides do lado de fora do armário de madeira, o colchão ainda quente e amassado pelo corpo que acabou de levantar, o relevo montanhoso do edredom azul claro largado, recriando fiordes de lã e nylon neste confortável quadricular planeta cama.


A dança hipnótica das magras persianas beges no forte ritmo musical dos ventos matinais na janela aberta da sala enquanto as folhas verdes nos vasos decorativos da sala balançam e concordam com tudo.


Você no espelho, cabelo bagunçado, pequenos e sonolentos olhos vermelhos, boca seca e pijama.


O velho tênis rasgado pisando na avariada calçada cinza na rua vazia, apenas alguns carros que dormem paralelos à guia, estabelecimentos comerciais ainda fechados e meia dúzia de árvores outonais sobrando na paisagem, outliers no gráfico metropolitano de figuras corriqueiramente apáticas estampadas mundo afora.


Trens chacoalhantes e sucateados entupidos de rostos, chapéus, livros e blazers diversos; identidades singulares perdidas na multidão inominável, homogeneizada pelo transporte púbico e de baixo custo que espreme as peculiaridades e experiências únicas de cada indivíduo em uma massa uniforme que geme e reclama e se aperta nos espaços possíveis não ocupados por bancos, mastros de aço e malas.


Nuvens arrogantes, aves silenciosas e um tímido Sol aquecendo um cachorro de rua deitado no chão, cabeça apoiada nas cansadas patas batalhadoras, olhos semicerrados por um singelo prazer natural, crianças saindo de seus aconchegantes sobrados, limpas, arrumadas, mochila nas costas, caderno nas mãos, emburradas no rosto e o senso de dever hesitando no momento de ir para a escola.


A vida começa a aparecer, assim como o dia. E me encontro filosofando comigo mesmo: nós reclamamos tanto das coisas que vemos que nos esquecemos de agradecer justamente pela incrível possibilidade de vê-las.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Algo a mais ...

Quando a comparação constante com os fantasmas do passado é um fardo muito grande a carregar.

É frustrante ver a intenção de atingir os mesmos significados perder a batalha e escorrer gélida pelos seus hesitantes dedos, como um pintor de parede tentando recriar a natureza em uma tela e não alcançar a perfeição de um Picasso – sem exposições nos museus sentimentais alheios. Há sempre (e no mínimo) um detalhe bloqueando o êxito. Aquela árvore importante que você deixou de desenhar porque se preocupou demais com o céu. Os tons, cores e relevos em contraste por sua desatenção, preteridos pela técnica do pincel que no fim de nada valia em separado do espetáculo geral da obra.

A questão do próprio desenvolvimento pessoal parece irrelevante quando vistas algumas falhas ou diferenças. Talvez, alguns nasceram para o Cordon Bleu e outros sempre queimarão o feijão e empaparão o arroz.

E a despeito do que supõe toda utópica hipótese de auto-alívio sobre as especialidades singulares que possui cada indivíduo, você perde em demasiados quesitos e diversas vertentes. Não por um fato isolado para balanceamento, mas pelo conjunto das histórias vividas, cada uma com sua peculiaridade a qual você não consegue vencer.

Implicitamente desesperado, lhe restam tentativas vãs de um diferencial significativo – aquele gesto único de esperança em tatuar na lembrança a sua existência. Se não pelo efervescente desejo de posse e entrega total que a paixão alimenta, pelo carinho contínuo, memórias e auxílio mútuo como só o amor tem a oferecer.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

[stop]

Acho que eu ando com um bloqueio criativo nos últimos tempos.

Não que me faltem idéias para as quais desenvolver longos e confusos parágrafos enrolados como é do meu feitio, mas justamente pela abundância de assuntos para falar e outras tantas razões indefinidas que as palavras me escapam do teclado.
Antes mesmo deste texto, por exemplo, ouvi quinhentas mil duzentas e oitenta e cinco músicas, passei por quatro ou cinco sites de notícias, comecei e terminei uns três e meio assuntos. E nada fluía. As palavras que geralmente me vêm mais fácil que perfume contrabandeado do Paraguai nas últimas semanas têm encontrado a resistência da Receita Federal mental deste meu cansado cérebro desiludido.

Eu realmente não sei qual é o vírus que contamina a minha criatividade. Será o stress de encarar um trabalho sério pela primeira vez na vida? A falta de concentração oriunda de minha felicidade atual, tornando difícil descrever o mar quando se está com a cabeça nas nuvens? Ou será que eu já gastei toda a minha munição verbal e agora tento apenas tirar leite de pedra?

Não. Já passei por isso antes. Tudo que preciso é de um lugar silencioso, um dia inteiro sozinho para escrever, e café.

Ainda assim, um dia volto a escrever bem. Mas, por enquanto, não havendo nada para acrescentar, tão pouco irei escrever.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Um breve pensamento

Uma breve teoria pensada há pouco durante o banho: nós nunca queremos de fato aprender, apenas não queremos errar.

Não estou dizendo que essa é a verdade, ou que estou certo. É apenas uma opinião. E não necessariamente a minha opinião, mas uma qualquer, podendo servir ou não dependendo da ocasião e análise.

Mas, em todo o caso, quando eu digo isso, que nós nunca queremos aprender, e sim não errar, eu espalho a regra para todas as vertentes do nosso cotidiano: amor, trabalho, estudos, família.

Temos o péssimo costume de repetir os erros diversas vezes; não por burrice, ou descuido ou descaso, mas porque não queremos saber o que é o certo ou melhor de fato, nós apenas evitamos errar e algumas vezes sabemos o caminho para tal.

Achamos que é horrível não aprender a utilizar aquela fórmula matemática para equações de segundo grau e nos sentimos um lixo, e estudamos e decoramos para poder não errar e não tirar notas vermelhas. Mas quem, com mais de vinte e um anos e que não estuda na área de exatas, lembra como resolver uma equação com duas incógnitas?

A humanidade, desde a antiguidade, vive em frustrações amorosas e sempre chora suas mágoas alegando que não aprendeu; mas realmente quis? Realmente parou e falou: vou aprender, vou analisar friamente e vou acertar? Imagino que não. Não assino embaixo de minhas estúpidas viagens textuais – mesmo porque muitas vezes me incluo nos quadros citados – mas suponho que a verdade é bem distante do ensino: agimos precipitada ou tendenciosamente, como nos convém no momento, e torcemos secretamente, fazendo vigas e mordendo os lábios, para não ter errado. Se deu certo, a sorte que vá trabalhar nos cassinos, pois nós no fundo não ligamos. Mas se dá errado (e geralmente dá), batemos no peito e dizemos que de agora em diante aprendemos a lição.

É a vida ... Um dia aprenderemos a aprender ... Até lá ...

terça-feira, 8 de junho de 2010

Ele e ela

Em uma conversa de botequim, bebendo aquela cerveja Heineken perfeitamente gelada sob o Sol escaldante em uma tarde de domingo, ele conversa com os amigos sobre a vida pessoal, casos e desejos.

Misturando sentimento e embriaguez, expulsa palavras de desabafo há anos entaladas em sua garganta como quem recita um poema shakespeariano mais do que bem decorado no iluminado palco de um teatro municipal lotado, relatando sua dolorida frustração por não ter aquela companheira especial querida desde criança, quando desenhava seu futuro com giz de cera vermelho em uma folha arrancada de caderno escolar e fazia planos de sustentá-la com seu salário de astronauta quando fosse o primeiro garoto a jogar bola na superfície de Júpiter.
Com mais detalhes que um relatório espião do FBI a respeito de algum suposto terrorista, ele descreve seu desejo de futura paixão inserindo hábitos, marcas de nascença, qualidades, defeitos e tudo mais que, seguindo os padrões de mente e coração solitários, acredita ser o complemento ideal de sua própria personalidade para lhe acompanhar até o fim dos tempos nessa jornada estúpida, íngreme e lítica chamada vida.

Mediante a análise lógica das descrições fornecidas pelo bêbado apaixonado, os amigos - céticos como é natural do ser humano perante questões do amor, universo e vida - informam com pesar a unânime opinião de que só em sonho ele encontraria essa garota que, se de fato não era perfeita no sentido amplo e total da palavra considerando toda diversidade de gostos e culturas existentes neste nosso planeta chamado Terra, era, no mínimo, o melhor possível (ou, no caso, impossível) para ele próprio.

Desacreditado da teoria que julgava conspirar a favor de sua solidão, indignou-se e, saindo do bar, cambaleando entre sujas vielas metropolitanas e garrafas vazias jogadas ao chão, rumo sua residência a quatro quarteirões dali, filosofou sobre sua utópica garota e maneiras de encontrá-la. No Shopping Center do bairro; em uma praia em Salvador; em uma cabana envelhecida de madeira nas Serras Gaúchas; no céu, escondida entre nuvens de chuva e urubus famintos procurando presas indefesas; debaixo do tapete de sua sala de jantar, em um compartimento secreto criado na Segunda Guerra Mundial para refugiados e que agora servia para nada além de cúmulo de poeira; na frente da Casa Branca, em Washington, fotografando a paisagem com uma câmera amadora vermelha em meio a outros vinte turistas japoneses igualmente maravilhados com a incrível cidade norte-americana. Nenhuma maneira soava absurdamente desestimulante e, ainda assim, sabia que, mesmo orgulhosamente relutando em aceitar a sugestão de suas amizades, somente em sonhos a conseguiria.

Quando uma idéia surge em sua mente - obviamente ridícula, mas ainda assim uma idéia (nestes e em muitos outros casos, ainda é melhor do que nada)-: se esta garota só é alcançável em sonhos, por que não simplesmente sonhar? Teoricamente, se o que todos dizem for verdade; e a Razão, apenas por uns dias, decidir tirar férias em Buenos Aires, visitar os atrativos turísticos da cidade e viajar um pouco com o Azar, torna-se então totalmente viável este estranho encontro subconsciente.
Relaxado, deitado em sua confortável cama dentro de seu quarto, trancado e totalmente no escuro, ele se permite dormir.

Acorda em um restaurante chique, dentro de um terno alinhado, degustando um Romanée-Conti, da safra de 1961, sentado em uma mesa com guardanapos de pano e ao som da melancólica harmonia de um quarteto de cordas. Confuso e atordoado, porém não menos satisfeito, tenta ligar os fatos às suas respectivas ordens cronológicas em vão, faltando uma lacuna entre o fechar de olhos em sua casa e a abertura neste exótico estabelecimento, desconsiderando ainda a improbabilidade financeira de sua presença ali.

Repara na arquitetura de classe, na iluminação indireta que dá o ar tradicional ao local, no clima do ambiente, com conversas tão baixas quanto sussurros ao pé do ouvido. Não sabe onde está, nem como chegou.

Olhando a frente, cara a cara, como se, pela primeira vez em toda a história do Universo, a obra encarasse o artista, ele a encontra. Finalmente, depois de uma vida inteira de espera, ele a vê, com o mais encantador sorriso já registrado por olhos humanos. Indescritível. Depois de tanto procurar, e desencontrar, e perder, e prestes a atravessar a linha tênue entre o visionário e o lunático, lá está ela. Mesmo sem a conhecer, sem nunca tê-la visto em nenhum outro lugar, nem ter idéia de sua existência, ele sabia quem era ela. Engasgado em si mesmo, atropelando as palavras como se todas quisessem sair ao mesmo tempo para impressioná-la antes da sucessora, tenta iniciar um diálogo.

Para evitar retóricas desnecessárias e facilitar a eloqüência, relevarei os detalhes mais específicos do encontro. Basta dizer que tudo aquilo que ele sempre esperou era muito menos do que ocorreu. Tudo fluiu como o melhor estruturado manancial e a mais límpida água. Muitos diriam perfeito. Ao julgar pela situação, as risadas, o jantar, a caminhada de volta para casa e a despedida, é melhor simplesmente não dizer nada, pois de fato não há necessidade disso.

No último beijo, aquele que depois do tchau, antes do fechar da porta por ela e a longa reflexiva caminhada retrospectiva dele, acordou. O teto agora iluminado pela luz que invade o quarto denuncia a ficção de tudo. Desanimado, passa café-da-manhã, almoço e jantar, trabalho, lazer e calvário, pensando na hora de deitar, sabendo que ainda há a possibilidade de repetir ou dar continuidade à história.

Dito e feito, a noite seguinte reservou-se para um passeio no parque com ela. E foi assim, por dias, dias e dias.

Semanas e meses se passaram com esses encontros noturnos imaginários. Finalmente estava feliz e completo. Não importava quão difícil, irritante, cansativo ou depressivo fosse o dia, à noite ela estaria lá. Melado, vivia para dormir. E acordava para ter sono, e dormir novamente.

Casou, teve filhos. Construiu uma vida inteira porque era o que esperavam que fizesse. Amava a esposa de dia, mas o coração realmente pertencia àquela que via à noite, traindo em sonhos e sentimento a mãe de seus filhos.

Nos sonhos, ela também envelhecia com ele. Juntos, viveram todas as noites de suas vidas, solitários em si mesmos. Apaixonado casal noturno de boêmios, agora idosos, cansados, aposentados de trabalho mas não de paixão.

E todas as noites, ele se perguntava como era possível viver uma vida paralela em seus devaneios pessoais. Uma vida inteira passada à noite com a mesma mulher. Como uma imaginação podia ser tão constante e real? Mal sabia ele que ali, na casa vizinha, vivia uma mulher - agora também com idade avançada como ele - que todas as noites dormia para encontrar aquele rapaz, que conheceu na mesa de um restaurante imaginário, e caminhou em um parque imaginário, e viveu uma vida imaginária, sem nunca nenhum dos dois sequer supor que, simplesmente batendo na porta ao lado, encontrariam o que procuraram em todos os outros lugares.

sábado, 5 de junho de 2010

Sombras

Nem apagando a luz.
Nem fingindo que não está vendo.
E até mesmo segurar aquele suspiro irritado depois de perceber que contar até noventa e nove não funciona mais é em vão.

Algumas sombras não somem.
Constantes, são as primeiras a darem oi, as últimas a darem tchau e transformam a idéia de levar uma pedrada na têmpora em uma manhã fria de domingo na melhor experiência possível de se imaginar.

E quando aquele silêncio semelhante à tomada de fôlego de um nadador antes do tiro de largada em uma corrida aparece, é para evitar palavras atomicamente afiadas e desnecessariamente explosivas que parecem cada vez mais inevitáveis.

Você até pensa - por um oitavo de segundo ou menos - que está enganado. Que não há ambiguidade ou intento, apenas má interpretação. Mas toda luz acesa, um dia esteve apagada, e ninguém bate o dedo do pé na beirada da cama quando enxerga o caminho. Como a virtuosa improvisação estudada de um jazz, casualidade e planejamento se confundem.

E atrapalha.
A escuridão sempre dificulta os passos do desenvolvimento.
E desgasta como o mais alto ruído quando tudo o que você quer é o mínimo digno de silêncio para conversar com aquela pessoa especial, saber da sua vida, suas histórias, suas ambições e pensamentos e o que consegue é a garganta arranhada por forçar o tom e palavras-chaves perdidas por desvio de atenção e outros sons.

As sombras são líquidas.
Penetram nas brechas de sua ausência e te afogam de um modo que, se tamanho empenho fosse aplicado longe de ti, haveria admiração pelo breu, e não rancor pela cegueira.