quarta-feira, 17 de março de 2010

Compassos em descompasso

Ouvindo música agora, decidi fazer um pequeno ensaio sobre a mesma, e sua mudança através das épocas. E quando digo mudança, eu tentarei ir, mesmo que sucintamente, mais fundo que uma simples comparação entre ritmos, modas e letras. Ao falar de música, digo o modo como nossa forma de audição se modificou. Como OUVIR MÚSICA se transformou e se adequou às necessidades sociais.
Se o nível de dados captados aumentou exponencialmente ao longo dos séculos - estima-se que uma edição diária do jornal New York Times tenha mais informações do que as recebidas por um habitante da idade média ao longo da vida inteira -, no mundo da música não foi diferente.
Para facilitar a comparação, partirei para o radicalismo entre a rotulada "música clássica" (que chamarei de "1", por preguiça literária) e os sons que estão nas paradas de sucesso atualmente (que pensei em chamar de "3" para fugir do óbvio, mas por motivos pedagógicos, chamarei de "2" mesmo).
Em 1, as peças tinham uma duração relativamente longa: obras inteiras, como a "Nona Sinfonia" de Beethoven, possuiam apenas uns 4 movimentos, com uma média de 10 a 15 minutos de duração cada um. As apresentações eram feitas em teatros, com pessoas sentadas confortavelmente, esperando, apreciando, sem pressa.
Em 2, músicas de 4 minutos são consideradas enormes. Discos lotados de músicas curtas são feitos e refeitos constantemente e já são lançados com prazo de validade determinado e planejamento futuro de novas composições no forno. Pocket shows, em pé, até mesmo ao ar livre garantem a diversão da população. Canções com longos solos ou muitos versos saem, inclusive, com uma versão "radio edit" menor, censurada - decepada! -, preterindo a beleza pelo vazio.
Em 1, as notas soavam. O tempo era mais cadenciado. Era possível aproveitar a singularidade dos timbres. A nota mais curta utilizada na idade média - chamada de "breve" - possuia o dobro de duração da nota usualmente mais longa das partituras atuais (a "semibreve").
Em 2, você mal entende de fato o que está acontecendo. Você conversa de música com um guitarrista e ele comenta que o ídolo dele é bom porque consegue executar milhões de notas por segundo. Bumbos duplos de bateria, ritmos frenéticos, tudo acelerado.
Em 1, havia mudanças de harmonia na mesma faixa. Uso vasto das escalas musicais, mudanças rítmicas, dinâmica: o silêncio e o barulho brigando por um espaço no palco. Dissonância era relativamente comum, e os padrões eram longos demais para decorar.
Em 2, as faixas, na maioria das vezes, se resumem ao uso de três ou quatro acordes. Uma divisão de introdução, verso e refrão é utilizada com exaustão. Padrões curtos e repetitivos que ficam grudados na mente como aquele chiclete de morango sem gosto que você coloca embaixo da cadeira da sala de aula quando a professora não está vendo.

Enfim, poderia ficar horas pesando os dois lados, mas seria inútil quando imagino que já consegui transmitir minhas idéias com relativa clareza.
Não estou dizendo, de modo algum, que um ou outro é o correto. Estou totalmente consciente que as épocas e as propostas diferem. Simplesmente não dá para comparar.
Minha intenção não foi vangloriar uma arte e menosprezar a outra. Ou levantar uma bandeira. Ou fingir ser um Moisés musical em cima de uma montanha, gritando as verdades do mundo para todos e acusando os deuses artísticos alheios.
Tudo isso foi apenas um pequeno ensaio sobre a música. E o tempo. E os tempos. E a vida. E como a clara diferença entre um banquete cuidadosamente preparado por François Vatel e aquele miojo básico de galinha caipiria para matar a fome quando chega da balada pode ser facilmente identificada no fone de ouvido do seu mp3.