segunda-feira, 22 de março de 2010

Felicidade

Um planeta muito distante. Tão longe de nossos olhos que nossa superestimada inteligência humana de séculos e séculos de estudos acadêmicos não consegue sequer imaginar uma forma próxima à razoável de medir a distância. Seu nome era Fictício.
Neste planeta Fictício, também há vida. Seres tão humanos quanto nós: seres humanos. E, tanto quanto aqui, também havia dor, sofrimento, decepção e todos os substantivos que nos fazem chegar em casa de mal-humor, suados, irritados ao voltar no metrô lotado após um dia de trabalho recheado de stress, pressa e nervos à flor da pele por causa de algum cliente chato que insistia em solicitar o inviável e você tinha que engolir as centenas de palavras que sua língua, como uma metralhadora mafiosa apontada para o coração da vítima que não pagou o que devia, se preparava para atirar porque aquele velho ditado contado, pintado e bordado por gerações e gerações familiares acabou por convencer tudo e todos de que ele sempre teria razão.
Um certo dia, um cientista, trabalhando incessantemente em seu laboratório caseiro, pago com um empréstimo bancário de juros incalculáveis que valeriam a pena considerando tudo que estaria por derivar deste arriscado investimento profissional, inventou uma nova pílula. Não uma pílula comum. Mas uma pílula que deixava as pessoas felizes, alegres e contentes. E não porque liberava alguma substância química relaxante responsável por amenizar os impactos externos no sossego mental do paciente. Mas porque solucionava, de fato, todos os problemas de quem a engolisse. Dívidas pagas, retornos amorosos, notas máximas em provas. Tudo seria, instantaneamente, como algum inexplicável milagre divino, resolvido.
Dono da patente, logo, monopolizando a produção, e responsável único pela produção do remédio que rapidamente virou notícia disseminada munda afora, o cientista abriu uma enorme fábrica para ofertar a pílula, que, por excelente inteligência publicitária ou pura obviedade nominal e consequente, dali em diante seria chamada de Felicidade.

Logicamente, não eram todos, de início, que possuíam Felicidade. As teorias econômicas nunca erram quando se trata de muita demanda para pouca oferta. Quando a Felicidade surgiu, somente os ricos tinham acesso.
A elite pagava caro para ter Felicidade. Banqueiros, políticos e celebridades poupavam o máximo que podiam. Deixavam, pela primeira vez em tempos, de comer a especialidade da casa naquele aconchegante restaurante onde eram clientes assíduos, com direito a foto na entrada e mesa VIP, para cozinhar a própria comida em seus ainda pouco utilizados fogões, já que até mesmo a empregada fora demitida por agora ser um luxo obstaculizante no caminho à Felicidade.

Percebendo na invenção uma possibilidade de auto-propaganda jamais antes vista, aliando utilidade pública com interesse pessoal, o governo apressou-se em subsidiar a produção da pílula, tornando-a viável para a maior porcentagem populacional possível. Cartazes, comerciais de televisão, chamadas em revistas: todas traziam, ao lado do logotipo do partido estabelecido na situação, slogans como "Só o nosso governo lhe traz Felicidade", "Felicidade ilimitada para nossos eleitores" ou até mesmo "A sua Felicidade é a nossa preocupação".

Assim sendo, agora quase toda a população poderia ter Felicidade. Ou ao menos era o que a maioria acreditava. Filas quilométricas formavam-se nas portas dos pontos de distribuição. Pedidos via internet, via jornais, via cartas, via mensagem de fumaça por aviões no céu, todos pedindo mais Felicidade. Até mesmo passeatas eram organizadas, unindo milhões de faces e o dobro de braços, todas segurando placas e gritando "Queremos um pouco de Felicidade!".

O medo de uma conspiração tramada pela oposição, advinda do proveito de uma revolta acumulada da população pela ainda insuficiente oferta de Felicidade, forçou o governo a liberar as patentes farmacêuticas e permitir a criação de indústrias genéricas do produto. Logo as prateleiras estavam tomadas por concorrentes da Felicidade: Sucesso, Riqueza, Ventura, Alegria, enfim, inumeráveis clones que tentavam tomar o lugar do antigo produto. Qualquer um que não conseguisse conquistar a Felicidade, se sacrificava um pouco menos atrás de Sucesso. Ou, sabendo que nunca poderia ter Felicidade, o indivíduo dedicava a sua vida pela Riqueza. Casos e acasos.

Infeliz e aparentemente, a bula do remédio não foi lida de modo correto. Talvez mesmo o menos instruído dos indivíduos, mas que tivesse mínima noção do alfabeto e uma capacidade semelhante de interpretação de texto, perceberia que a Felicidade pede uso moderado. Em um trocadilho sem nenhuma intenção de comparação explícita com o outro substantivo, este comum, que não dá título a pílulas nem a coisa alguma, só a um conceito: ambição e Felicidade não caminham juntos.
A maior prova disso foram os meses que sucederam a massificação da produção: o exagero por parte da população. Não raro eram os casos de pessoas que engoliam três, quatro, dez comprimidos de Felicidade de uma vez e paravam no hospital por overdose. Ou brigas entre conhecidos, amigos e irmãos pela Felicidade individual. Chegou-se ao desespero quando empreendimentos eram saqueados por Felicidade.
A Felicidade tornou-se um vício. As crianças aprendiam na escola que Felicidade era a melhor coisa de todos os tempos e o motivo de toda a existência. Ninguém se contentava mais com pouca Felicidade. Quando já era possível ter pequenas Felicidades no decorrer do dia, as pessoas buscavam uma Felicidade maior. Uma Felicidade grande o suficiente para causar inveja nos vizinhos e conhecidos. Felicidades eram comparadas. Era comum ouvir que a Felicidade de um era maior que a Felicidade de outro. Quem tinha pouca Felicidade, ou Felicidade comum, daquelas doses diárias que só o cotidiano é capaz de prover, não ficava completamente satisfeito. Era obsessão.
E a primeira de muitas mortes comoveu o mundo: o filho, criado desde sempre para buscar a Felicidade a qualquer custo, não aguentou a pressão de ser incapaz e assassinou, com dois tiros, o dono daquela mercearia de bairro, atrás de, pelo menos, Riqueza, já que Alegria não dura muito e Sucesso é escasso.
Chacinas, sequestros e muitos roubos depois, todos em busca de Felicidade para cada um dos responsáveis, e o governo decidiu banir o produto. Mais nenhuma produção, genérica ou oficial, de Felicidade ou semelhante, seria permitida. Os problemas antigos voltaram. A população continua a reclamar das velhas coisas de antes. Mas ao menos um dos males foi morto pela raíz.
Ainda hoje há quem continue a procurar pela Felicidade.
Os mais velhos dizem que ela nunca mais voltará. Os mais novos acham que, na realidade, ela nunca existiu. No fim das contas, talvez ambos estejam certos. Ou talvez a resposta ainda não foi criada, escondida indeterminadamente na garagem-laboratório de um aspirante a mais novo cientista, que encontrará alguma outra fórmula em um belo sorriso de satisfação oriundo da mais verdadeira felicidade, esta com letra minúscula mas não menos importante.