quarta-feira, 30 de junho de 2010

Ponto de vista

O velho abajur preto de lâmpada fluorescente aceso pela sonolenta mão direita após o contínuo grito alarmante do despertador indicando que são sete e vinte da manhã fria de uma quarta-feira de trabalho.


O quarto bagunçado, roupas jogadas em cima da cadeira e penduradas em cabides do lado de fora do armário de madeira, o colchão ainda quente e amassado pelo corpo que acabou de levantar, o relevo montanhoso do edredom azul claro largado, recriando fiordes de lã e nylon neste confortável quadricular planeta cama.


A dança hipnótica das magras persianas beges no forte ritmo musical dos ventos matinais na janela aberta da sala enquanto as folhas verdes nos vasos decorativos da sala balançam e concordam com tudo.


Você no espelho, cabelo bagunçado, pequenos e sonolentos olhos vermelhos, boca seca e pijama.


O velho tênis rasgado pisando na avariada calçada cinza na rua vazia, apenas alguns carros que dormem paralelos à guia, estabelecimentos comerciais ainda fechados e meia dúzia de árvores outonais sobrando na paisagem, outliers no gráfico metropolitano de figuras corriqueiramente apáticas estampadas mundo afora.


Trens chacoalhantes e sucateados entupidos de rostos, chapéus, livros e blazers diversos; identidades singulares perdidas na multidão inominável, homogeneizada pelo transporte púbico e de baixo custo que espreme as peculiaridades e experiências únicas de cada indivíduo em uma massa uniforme que geme e reclama e se aperta nos espaços possíveis não ocupados por bancos, mastros de aço e malas.


Nuvens arrogantes, aves silenciosas e um tímido Sol aquecendo um cachorro de rua deitado no chão, cabeça apoiada nas cansadas patas batalhadoras, olhos semicerrados por um singelo prazer natural, crianças saindo de seus aconchegantes sobrados, limpas, arrumadas, mochila nas costas, caderno nas mãos, emburradas no rosto e o senso de dever hesitando no momento de ir para a escola.


A vida começa a aparecer, assim como o dia. E me encontro filosofando comigo mesmo: nós reclamamos tanto das coisas que vemos que nos esquecemos de agradecer justamente pela incrível possibilidade de vê-las.