terça-feira, 8 de junho de 2010

Ele e ela

Em uma conversa de botequim, bebendo aquela cerveja Heineken perfeitamente gelada sob o Sol escaldante em uma tarde de domingo, ele conversa com os amigos sobre a vida pessoal, casos e desejos.

Misturando sentimento e embriaguez, expulsa palavras de desabafo há anos entaladas em sua garganta como quem recita um poema shakespeariano mais do que bem decorado no iluminado palco de um teatro municipal lotado, relatando sua dolorida frustração por não ter aquela companheira especial querida desde criança, quando desenhava seu futuro com giz de cera vermelho em uma folha arrancada de caderno escolar e fazia planos de sustentá-la com seu salário de astronauta quando fosse o primeiro garoto a jogar bola na superfície de Júpiter.
Com mais detalhes que um relatório espião do FBI a respeito de algum suposto terrorista, ele descreve seu desejo de futura paixão inserindo hábitos, marcas de nascença, qualidades, defeitos e tudo mais que, seguindo os padrões de mente e coração solitários, acredita ser o complemento ideal de sua própria personalidade para lhe acompanhar até o fim dos tempos nessa jornada estúpida, íngreme e lítica chamada vida.

Mediante a análise lógica das descrições fornecidas pelo bêbado apaixonado, os amigos - céticos como é natural do ser humano perante questões do amor, universo e vida - informam com pesar a unânime opinião de que só em sonho ele encontraria essa garota que, se de fato não era perfeita no sentido amplo e total da palavra considerando toda diversidade de gostos e culturas existentes neste nosso planeta chamado Terra, era, no mínimo, o melhor possível (ou, no caso, impossível) para ele próprio.

Desacreditado da teoria que julgava conspirar a favor de sua solidão, indignou-se e, saindo do bar, cambaleando entre sujas vielas metropolitanas e garrafas vazias jogadas ao chão, rumo sua residência a quatro quarteirões dali, filosofou sobre sua utópica garota e maneiras de encontrá-la. No Shopping Center do bairro; em uma praia em Salvador; em uma cabana envelhecida de madeira nas Serras Gaúchas; no céu, escondida entre nuvens de chuva e urubus famintos procurando presas indefesas; debaixo do tapete de sua sala de jantar, em um compartimento secreto criado na Segunda Guerra Mundial para refugiados e que agora servia para nada além de cúmulo de poeira; na frente da Casa Branca, em Washington, fotografando a paisagem com uma câmera amadora vermelha em meio a outros vinte turistas japoneses igualmente maravilhados com a incrível cidade norte-americana. Nenhuma maneira soava absurdamente desestimulante e, ainda assim, sabia que, mesmo orgulhosamente relutando em aceitar a sugestão de suas amizades, somente em sonhos a conseguiria.

Quando uma idéia surge em sua mente - obviamente ridícula, mas ainda assim uma idéia (nestes e em muitos outros casos, ainda é melhor do que nada)-: se esta garota só é alcançável em sonhos, por que não simplesmente sonhar? Teoricamente, se o que todos dizem for verdade; e a Razão, apenas por uns dias, decidir tirar férias em Buenos Aires, visitar os atrativos turísticos da cidade e viajar um pouco com o Azar, torna-se então totalmente viável este estranho encontro subconsciente.
Relaxado, deitado em sua confortável cama dentro de seu quarto, trancado e totalmente no escuro, ele se permite dormir.

Acorda em um restaurante chique, dentro de um terno alinhado, degustando um Romanée-Conti, da safra de 1961, sentado em uma mesa com guardanapos de pano e ao som da melancólica harmonia de um quarteto de cordas. Confuso e atordoado, porém não menos satisfeito, tenta ligar os fatos às suas respectivas ordens cronológicas em vão, faltando uma lacuna entre o fechar de olhos em sua casa e a abertura neste exótico estabelecimento, desconsiderando ainda a improbabilidade financeira de sua presença ali.

Repara na arquitetura de classe, na iluminação indireta que dá o ar tradicional ao local, no clima do ambiente, com conversas tão baixas quanto sussurros ao pé do ouvido. Não sabe onde está, nem como chegou.

Olhando a frente, cara a cara, como se, pela primeira vez em toda a história do Universo, a obra encarasse o artista, ele a encontra. Finalmente, depois de uma vida inteira de espera, ele a vê, com o mais encantador sorriso já registrado por olhos humanos. Indescritível. Depois de tanto procurar, e desencontrar, e perder, e prestes a atravessar a linha tênue entre o visionário e o lunático, lá está ela. Mesmo sem a conhecer, sem nunca tê-la visto em nenhum outro lugar, nem ter idéia de sua existência, ele sabia quem era ela. Engasgado em si mesmo, atropelando as palavras como se todas quisessem sair ao mesmo tempo para impressioná-la antes da sucessora, tenta iniciar um diálogo.

Para evitar retóricas desnecessárias e facilitar a eloqüência, relevarei os detalhes mais específicos do encontro. Basta dizer que tudo aquilo que ele sempre esperou era muito menos do que ocorreu. Tudo fluiu como o melhor estruturado manancial e a mais límpida água. Muitos diriam perfeito. Ao julgar pela situação, as risadas, o jantar, a caminhada de volta para casa e a despedida, é melhor simplesmente não dizer nada, pois de fato não há necessidade disso.

No último beijo, aquele que depois do tchau, antes do fechar da porta por ela e a longa reflexiva caminhada retrospectiva dele, acordou. O teto agora iluminado pela luz que invade o quarto denuncia a ficção de tudo. Desanimado, passa café-da-manhã, almoço e jantar, trabalho, lazer e calvário, pensando na hora de deitar, sabendo que ainda há a possibilidade de repetir ou dar continuidade à história.

Dito e feito, a noite seguinte reservou-se para um passeio no parque com ela. E foi assim, por dias, dias e dias.

Semanas e meses se passaram com esses encontros noturnos imaginários. Finalmente estava feliz e completo. Não importava quão difícil, irritante, cansativo ou depressivo fosse o dia, à noite ela estaria lá. Melado, vivia para dormir. E acordava para ter sono, e dormir novamente.

Casou, teve filhos. Construiu uma vida inteira porque era o que esperavam que fizesse. Amava a esposa de dia, mas o coração realmente pertencia àquela que via à noite, traindo em sonhos e sentimento a mãe de seus filhos.

Nos sonhos, ela também envelhecia com ele. Juntos, viveram todas as noites de suas vidas, solitários em si mesmos. Apaixonado casal noturno de boêmios, agora idosos, cansados, aposentados de trabalho mas não de paixão.

E todas as noites, ele se perguntava como era possível viver uma vida paralela em seus devaneios pessoais. Uma vida inteira passada à noite com a mesma mulher. Como uma imaginação podia ser tão constante e real? Mal sabia ele que ali, na casa vizinha, vivia uma mulher - agora também com idade avançada como ele - que todas as noites dormia para encontrar aquele rapaz, que conheceu na mesa de um restaurante imaginário, e caminhou em um parque imaginário, e viveu uma vida imaginária, sem nunca nenhum dos dois sequer supor que, simplesmente batendo na porta ao lado, encontrariam o que procuraram em todos os outros lugares.